Thursday, June 29, 2006

Da invisibilidade visível



Ela gostava de fios. Fios tecidos sem dizer. Invisíveis. Às vezes visíveis. Fios de seda. Ou algodão. Fios como riscos em folhas brancas. Ou gotas de chuva que escorrem no vidro. Fios de desejo. Ou de saudade. Fio de prumo. E do horizonte. Um fio de lã vermelha a percorrer um livro. Um fio de água a matar-lhe a sede. O fio de Ariadne. O fio de uma vida inteira. No fio da navalha. E a vida dela por um fio...

Sunday, June 25, 2006

A mulher que entrou no metro em Gloucester Road



A mulher que entrou no metro em Gloucester Road era alta e magra. Bela. Mais do que o suficiente para lhe chamar a atenção. A mulher que entrou no metro em Gloucester Road mereceu-lhe o elogio do detalhe. Cabelo castanho inebriante. Olhos profundos e lábios cheios. Seios altivos. Ventre plano. Ancas redondas e firmes. Pernas longas e musculadas. Pele dourada num vestido diáfano. Um pisar que era mais flutuar. Os saltos dos sapatos a sugerir inconfessáveis indiscrições. Bela, a mulher que entrou no metro em Gloucester Road, cada poro da pele morena a pedir para ser fotografado. Notting Hill a chegar demasiado depressa e ele a pensar o mesmo que sempre pensava quando isto lhe acontecia. Mas é que nunca mais saio de casa sem a máquina fotográfica.

Era assim que ele se lembrava da história



Era assim que ele se lembrava da história estava na esquina da Union Square com a rua 14 quando viu a estrela não era dessas porque em New York pelo menos naquele local não se consegue ver as estrelas no céu por causa do nevoeiro ou talvez da poluição e de tudo o mais mas o que ele viu foi a estrela de cinema de carne e osso a passar dentro de um carro as janelas abertas e ela a sorrir e por isso é que ele a viu e mais ninguém se apercebeu e foi rápido a pegar na máquina e a apontar mas então nesse momento nesse preciso instante decisivo apareceu este pequeno miúdo chinês este pequeno miúdo chinês engraçado mesmo riquinho como todos os pequenos miúdos chineses com os olhos amendoados em bico mesmo e com o cabelo muito preto muito espetado e o raio do puto devia ser surdo ou se calhar só estúpido e corre para a estrada sem olhar para o lado sem ver o enorme camião do lixo que está a dez metros de distância e que vai esmagá-lo daí a quatro metros pelo menos é este o cálculo que ele faz assim de repente muito depressa e mais depressa manda a mão direita ao miúdo ao mesmo tempo que muda a máquina para a outra mão ele não percebe bem como é que fez aquilo ouve a máquina a disparar e o puto está imóvel no ar e o camião passa à frente deles com um barulho assustador e a fotografia não mostra estrela nenhuma aliás ele já nem se lembra da estrela e o miúdo volta a atravessar a estrada a correr e vira-se para trás e sorri-lhe e é um sorriso giro enfim nada que se compare ao sorriso da estrela ele já se lembrou dela outra vez e talvez as coisas tenham sido diferentes mas é assim mesmo que ele se lembra da história assim mesmo sem pontuação nem nada.

Bruxelas



Conheciam-se há anos mas queriam-se há muito mais tempo. Desde que se conheceram ou, talvez, até antes. Um dia, rectius, uma noite, fruto de alguns acasos e muitas vontades, deram por si num quarto de hotel em Bruxelas. Ele odiava a cidade, viera em trabalho. Ela quase tanto, estava por lá há meses num curso de dança. Cansado, ele, cheia de nódoas negras, ela. Estão ambos sentados, ele na beira da cama, ela na beira da única cadeira. Evitam olhar-se, primeiro, olham-se de soslaio, depois, entreolham-se, desconcertados, em seguida, olham-se, desconcentrados, por fim. Pelo canto do olho, ele. Olhos nos olhos, ela. Sabem que nunca estiveram tão perto. A não ser talvez naquele dia, rectius, naquele final de tarde, junto ao rio, quando os lábios dela se despediram no ombro dele. Mas isso foi há tanto tempo. Num canto do quarto há uma miniatura de Tintin, apressado, Milou aos pinchos. Ela olha para os bonecos e sorri. Ele respira fundo como costuma fazer por quase tudo (e quase nada) e sorri. Levantam-se, ao mesmo tempo. De um salto. Como dançarinos. A presença da cama, fofa e imaculada, ensurdece-os. Nenhum olha para trás. Só voltam a falar depois da primeira cerveja no café na esquina da Grand Place. A noite corre, longa, terna e quente. Na próxima semana, no dia dos anos dela, ele voltará a Bruxelas. Ela não estará lá.

Just strangers



Todos os achavam o casal ideal. Ele, alto e moreno, elegante e charmoso. Ela, loura e esguia, bela e sensual. Todos achavam mesmo que poderiam ter sido imensamente felizes. Moraram ambos três anos no mesmo prédio. Ela no segundo piso. Ele no sétimo. Nunca se encontraram. Foi pena...

Wednesday, June 14, 2006

Uma coisa que ele não costumava dizer



E nem sequer era a coisa pior. Ou antes, a melhor. Era apenas mais uma das inúmeras coisas que, na altura certa, no momento exacto, no instante decisivo, lhe ficavam presas na garganta ainda que, às vezes, pelo menos ele queria acreditar que sim, se lhe escapassem do olhar. De um gesto. Ou de um beijo. Mas os beijos também lhe eram raros...

The strong, silent type, usually stays that way, like the long-forgotten pulp hero Jonny Gossamer.

Monday, June 12, 2006

Assobio



A primeira recordação que ele tinha de um filme era de "La Dolce Vita". Mas não, não fora Sylvia que lhe ficara dessa viagem, demasiado criança, ao circo do inautêntico. Fora um velho, lembrava-o sem dentes e sem fala, a olhar para o Sol em busca da Virgem e a ficar cego. Estranhamente porém, naquele momento, não se lembrara do velho. Ficara apenas muito calmo, muito quieto, alheio a toda a agitação à sua volta, com uma melodia a agarrar-lhe os sentidos e um assobio, baixinho, a fazê-lo sorrir.

This is the end
Beautiful friend
This is the end
My only friend ...

A imitação do silêncio



Algo acontecera ali. O início ou o fim de qualquer coisa. Alguém estivera ali e já não estava. Havia naquela cor uma espécie de porquê ou de quando. Ou o que ela não era. Como se a fotografia a tivesse tirado a ela e não o contrário. Era por isso que voltava. Pelo reconhecimento de um segredo que nunca chegara a ser-lhe murmurado. Pelo silêncio. A imitação do silêncio. A ilusão de morte. Sabia-o, o fim, se fosse um sítio, seria ali.

Uma coisa que ele costumava dizer



É que nada é o que parece.
Olha outra vez, pedia-lhe.

Take your time...

Sunday, June 04, 2006

Não-lugares



Ele gostava de lugares que não eram bem lugares. Sítios de passagem, palcos da solidão de cada um, despojados e efémeros. Não lugares, chamara-lhes alguém. Certo é que ele se sentia lá bem. Talvez fosse porque ele próprio nunca sentira verdadeiramente que pertencia a algum lugar. Ou a alguém. Gostava de lugares que não eram bem lugares como gostava de pessoas que não eram bem pessoas. Personagens. Cenários. Um dia vais ter de te tratar, diziam-lhe. Um dia vou ter de me tratar, pensava. E depois, sorrindo, um dia. Em breve, talvez.

Vermelho



Havia uma rapariga que tinha um blog a quem tinham dito esta é a cor do teu blog e deram-lhe uma imagem ou talvez fosse uma reprodução de um quadro parecia um Rothko mas talvez não fosse e ela olhou e viu lá a cor grená e escreveu lá no blog grená, granatrot, grenat, grenata.A ele quando a olhou pela primeira vez pareceu-lhe vermelho.Voltou a olhar.Vermelho.Talvez fosse do écrã...Vermelho.Tornou a olhar.Vermelho.Talvez fosse dos olhos dele.Ou dos olhos dela.Ou porque aquela era a cor dele.Vermelho.Encarnado...?