Monday, May 29, 2006

Lá em cima



Todas as coisas que ele via dependiam sempre, na maneira como as via, da perspectiva, da circunstância, de com quem estava, da hora do dia, de outras tantas coisas. Era assim com toda a gente, gostava de pensar. Mas, no fundo, sabia que não. Quanto a si, porque as coisas que via dependiam de outras tantas coisas, por vezes confundia-as. Já lhe acontecera, por exemplo, trocar a Torre de Montparnasse pela Torre Eiffel. Mas, tanto quanto se lembrava, nunca confundira o Chrysler com o Empire. Sabia exactamente a qual deles subira, naquela noite longínqua de Setembro. Estava tanto frio. Quando olhou à volta, lá em cima, não viu uma única coisa que não fosse resultado da criação humana. Nem um bocadinho de natureza à vista. Alguns dir-lhe-iam que não, que também lá estava o Central Park, mas ele sabia melhor. Então sentou-se e chorou. Chorou tanto que achou que seria a última vez que chorava. Mal ele sabia... Mas, de felicidade, talvez tenha sido.

Sunday, May 28, 2006

Limão



Ele sabia que ela gostaria de ir naquele voo para Dubrovnik. O avião era velho e sujo, com espaços infimos entre as cadeiras, cheio de excursionistas barulhentos e desdentados, mas depois do snack, provavelmente o pior snack que ele alguma vez cheirara em mais de duas centenas de voos, uma hospedeira que tinha, quase, a boca da Gina Gershon, ofereceu-lhe um rebuçado. Era uma geleia. De limão. Com creme de limão por dentro. Nada de especial, na verdade, mas, naquele momento, soube-lhe pela vida.

Tuesday, May 23, 2006

Ponto verde



Há anos que ela procurava uma porta verde. Com uma maçaneta dourada. Não era uma porta qualquer, a porta verde. Com a maçaneta dourada. Ora, por estranho que parecesse, as portas verdes não eram fáceis de encontrar. Menos, na verdade, que as maçanetas douradas. De vez em quando lembrava-se que uma certa noite, estava frio e a ela apetecia-lhe andar, procurara durante horas um específico ponto verde. Não o encontrara. Talvez tivesse encontrado outra coisa. Ou não. Certo é que, anos depois, quando finalmente passou pelo ponto verde, não se lembrou.

Les femmes qui lisent sont dangereuses



Era o final da tarde. Setembro, ainda sem as folhas vermelhas de quando o Outono torna o entardecer mais frio.Ela estava sentada na varanda, na sua cadeira favorita, a ler um livro de páginas iluminadas pela história de um homem que acabaria junto a um lago num dia de vento.Baloiçava, muito devagar, a perna direita, enquanto, com a mão esquerda, entre o voltar silencioso de cada folha, percorria distraídamente, umas vezes, a curva do joelho, outras, a linha do pescoço.Ele observava-a, sem saber se ela o sabia.Ele conhecia a história que ela agora descobria.Ele sabia que chegaria um momento no qual, enfeitiçada pela viagem de uma chávena de chá tocada por diferentes lábios, ela susteria a respiração por um momento tão pequeno que nem ela própria se aperceberia, e que nesse momento, tão fugaz que ele não o conseguiria ver, tudo à sua volta, o canto dos pássaros, o silêncio do jardim, o azul do céu, se confundiria no sorriso bonito que ela não chegaria a esboçar.Nesse momento, talvez ele pudesse ter-se acercado dela tomando o livro nas suas mãos, primeiro, e, depois, tranquilizando-a com a sua voz, lendo, só para ela o capítulo seguinte da história.Ela fecharia os olhos e ele continuaria a ler, já sem olhar o livro, contando de memória a história da rapariguinha de quimono vermelho e olhos fechados, os olhos que o homem que acabaria junto a um lago num dia de vento ainda não vira, enquanto o seu próprio olhar se perderia no ondular quente da pele dela acariciada pela última luz.Mas quando esse momento chegou, quando no rosto dela houve o quase esboçar de um sorriso imperceptível, um arrepio inesperado que atribuiu à brisa que não se ouvia, ele apenas procurou uma última vez o seu olhar, sabendo de antemão que não o encontraria, e, depois, silenciosamente, retirou-se, sem coragem para dizer nem que fosse o príncipio de uma palavra que pudesse estragar a perfeição daquele final de tarde.

Monday, May 22, 2006

Fábula



Ele vivia numa fábula. Permanentemente, quase se diria. Sem limites nem fronteiras entre espaços e tempos, lugares ou distâncias. Num mundo em que o adulto esquecido, entediado, até no mais feio sofá verde podia, ainda assim, continuar a brincar aos carrinhos num qualquer sítio recôndito da sua imaginação. Às escondidas. Sem que ninguém desse por nada. Às vezes, sem ele próprio dar por isso. Não que ele não soubesse. É que, como Boca Dourada uma vez lembrou a Corto Maltese, quando um adulto entra no mundo das fábulas nunca mais consegue de lá sair.

Ali...



Ali, era um sítio onde ela nunca estivera. Mas que conhecera desde sempre. Por um só instante. Pequeno, como todas as coisas que ela sabia que não aconteciam por acaso. Mágicas, pensava. E ria-se. E ria-se. Ria, sem parar. Ria, até já não conseguir parar de rir.

Tuesday, May 16, 2006

O Recreio

Na minh’ Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar
—Balouço à beira de um poço,
Bem difícil de montar...

— E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia;
Morre a criança afogada...

— Cá por mim não mudo a corda
Seria grande estopada...
Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

— Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

(Mário de Sá-Carneiro)